TOLERÂNCIA

11 de abril de 2018

A história da origem da consciência acompanha a evolução da humanidade. Por isso, diante do desconhecido, na ausência do saber científico e da pouca organização social, foram criados os mitos, acompanhados de seus respectivos ritos, para poder abrandar o medo de cada grupo de humanos. Com o surgimento das estruturas sociais os conjuntos de mitos e ritos foram institucionalizados passando a ser a base fundante das religiões, formatando as crenças, na forma de dogmas, para aliviar a angústia diante das questões existenciais: De onde eu vim? Para onde vou? Quem sou eu? Se é que vim, vou ou sou! Com isso, a identificação religiosa passou a ser elemento de inclusão social, obviamente fomentando conflitos e competições entre os grupos fidelizados nos respectivos dogmas, continuamente em busca de afirmação e poder. Neste contexto a intolerância fica instituída, obviamente usando o nome de Deus para salvaguardar as crenças de cada grupo.

Na visão da psicologia junguiana, abordagem que sigo em minha prática clínica, constatamos que toda vez que surge um clima de intolerância e de mau humor, nas várias possibilidades de vínculos e relações humanas, significa que os jogos das projeções começaram a dominar as pessoas envolvidas. Ou seja, aquilo que não suportamos em nós fica projetado no outro, de forma consciente ou inconsciente, numa tentativa iludida de conseguirmos extinguir ou anular estes conteúdos que são indesejados, mas que fazem parte da nossa personalidade. Com isso, necessitamos eliminar o outro, que funciona como um fiel depositário dos nossos conteúdos sombrios. Eliminar o outro, que é o diferente, pela fantasia de excluirmos, de nós mesmos, os conteúdos sombrios que nos incomodam. Por isso é que o diálogo e o encontro ficam tão difícil, no lugar de cooperação criativa surge a competição destrutiva e a intransigência, que impede o reconhecimento do verdadeiro eu.

Aquele que acredita ser possuidor da verdade, convicto do seu saber, aprisionado em fundamentalismos científicos ou religiosos sempre fica arrogante e intolerante em aceitar outros posicionamentos, transformando o diferente em desigual, como mecanismo de defesa para preservar seus posicionamentos conceituais. Muitas vezes torna-se um moralista que tenta impor a todos os seus valores, que julga ser absolutamente certos. Para esse indivíduo, a única possibilidade é a prática da alteridade para que a tolerância possa ser estabelecida.

Porém, a tolerância e uma das virtudes mais paradoxais que existe porque ela, por si mesma e de forma absoluta, pode contrariar sua própria essência quando é tolerante com os intolerantes. Ou seja, seu fundamento pode estimular sua antítese. Por isso, refletir a respeito da sua origem e suas consequências implicativas é uma oportunidade que, inevitavelmente, contribuirá para a nossa ampliação de consciência.

Sempre associo a tolerância com a filosofia cristã que ensina que: “quando alguém lhe der um tapa, ofereça a outra face”. Porém, desde cedo compreendi que essa orientação não tinha a intenção de nos deixar fracos, impotentes ou coniventes com o agressor. Porque, para oferecer a outra face precisamos reconhecê-la em nós mesmos, partindo do principio de que ninguém pode dar o que não tem, mas também não poderá receber o que não pode dar. Ou seja, esse ensinamento faz com que reflitamos a respeito da face que estamos deixando amostra e aquela que está na sombra e não estamos mostrando, por ignorância, medo, vaidade ou arrogância. Com isso, dependendo da face oculta, o agressor estapeador poderá ficar arrependido ou, preventivamente, intimidado.

Outra questão é a respeito do limite da sua utilização, pois ela foi criada por conta dos conflitos teológicos, na idade média, porque, infelizmente, na história da evolução humana, em nome de Deus foram e ainda são cometidos os maiores absurdos. Daí vem à questão se devemos ser tolerantes com o terrorismo, que age em nome da santidade, como os inquisidores cristãos da idade média agiram? Com isso, questiona-se se a tolerância deve ter limites ou não? Saramago, premio Nobel de literatura, afirma sabiamente que: “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se” Nesse sentido, não se pode ser tolerante para com a tortura, o estupro, a pedofilia, a escravidão, o narcotráfico, o terrorismo, a guerra. Neste sentido, compreendo que crime é todo ato que impede a liberdade tratando o outro sem igualdade e fraternidade e, neste caso, ao criminoso, só pode restar a perda da liberdade.

O exercício da alteridade é o melhor meio para a superação da rigidez e da intolerância frente ao novo e ao diferente. No dinamismo da alteridade podemos começar a aprender a sair das nossas convicções para compreender as convicções do outro. É na capacidade de sair de si para poder se ver com os olhos do outro que a tolerância e o bom humor pode ser reconquistado e mantido, Nietzsche dizia que as convicções são prisões. Entretanto, sem a prática da alteridade, eu posso até me reconhecer no meu ego, apesar disso eu jamais saberia quem sou eu se não houvesse um alter-ego para saber que há um outro eu. Eu sou porque o outro existe, sem ele eu não seria.

Com a prática da alteridade, inevitavelmente, o respeito, que significa olhar e se deixar olhar, vai sendo presentificado, até que os sentimentos de amor e de compaixão começam a acontecer nas diversas formas de vínculos e relações humanas. Com o exercício da alteridade a construção da identidade e o confronto com o diferente começam a acontecer de forma mais simples e natural, porque passamos a entender que a evolução é um contínuo processo de construções e desconstruções, de envolvimentos e de desenvolvimentos, muitas vezes experimentados e percebidos associados a sentimentos de perda, separações e medo do novo, podendo provocar, defensivamente, tentativas de fugas a um passado mais primitivo e infantil, causadores de várias atitudes e posições regredidas. Desta forma, para que a tolerância consciente aconteça é necessário, antes de tudo, o autoconhecimento e a prática da alteridade. Porque a intolerância, acima de tudo, é fruto da baixa autoestima, do medo e dos sentimentos de inferioridade.

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia, Vols. I ao XIV, Lisboa, Presença, 1970.

ARENDT, Hannah. A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964.

MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado, Eleva Cultural, SP, 2010.

ZWEIG, Connie, e ABRAMS, Jeremiah.(org.), Ao encontro da sombra, São Paulo, Cultrix, 1994

 

WALDEMAR MAGALDI FILHO, Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado” e coordenador e professor dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Arterapia, Psicossomática e DAC – Dependências, abusos e compulsões do IJEP – Instituto Junguiano de ensino e Pesquisa (www.ijep.com.br).


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